Amor e Responsabilidade: entendendo corretamente as bases da amizade

domingo, 18 de março de 2012

  
Por Edward P. Sri (baseado em seu livro "Men, Women and the Mystery of Love")

   O que um padre celibatário pode nos ensinar sobre amor, sexualidade, e relacionamentos entre homem e mulher?

      Essa é a pergunta que um padre polonês, Karol Wojtyla, se fez na introdução de seu livro revolucionário, "Amor e Responsabilidade". Publicado em 1960, esse livro sobre a ética sexual foi fruto do extenso trabalho pastoral do Pe. Wojtyla com jovens, e das reflexões filosóficas que fez sobre esse tema quando ainda servia como sacerdote e professor universitário em Cracóvia - muito antes do mundo conhecê-lo como João Paulo II.

      No livro "Amor e Responsabilidade", o Pe. Wojtyla argumenta que, apesar de faltar ao sacerdote a experiência direta do casamento e da sexualidade, ainda assim existe algo que lhe confere uma perspectiva ainda mais ampla nesses assuntos: uma vasta "experiência secundária". Como conselheiro espiritual que trabalhava bem próximo a muitos jovens adultos e jovens casais em meio a suas batalhas no campo do amor e da sexualidade, Pe. Wojtyla pôde aprender com a experiência de lidar com um variado espectro de personalidades, relacionamentos e casamentos, de um modo tal que não seria possível a um homem leigo. "Amor e Responsabilidade" foi o fruto dessa rica experiência pastoral, bem como de suas próprias reflexões filosóficas e teológicas sobre o amor, o sexo e o matrimônio.

Um grande livro

      Janet Smith, dos Estados Unidos, uma das grandes palestrantes de ética sexual, afirma que "Amor e Responsabilidade" não é apenas um livro importante. Ela diz que esse livro deveria ser reconhecido como uma das maiores obras da civilização ocidental. Segundo ela, deveríamos colocar "Amor e Responsabilidade" junto com a "Ilíada" de Homero, a "Divina Comédia" de Dante, as "Confissões" de Santo Agostinho, na lista dos grandes livros do mundo, pelos séculos que virão. Ela diz: "Eu acredito que o livro do Papa João Paulo II deve figurar nessa lista por achar que as gerações futuras irão ler esse livro - elas certamente o devem fazer, pois se o fizerem verão que o livro enfrenta com firmeza questões que todo temos sobre a vida, além de oferecer uma maneira de ver as relações humanas que, se aceita, pode alterar radicalmente a maneira com a qual conduzimos nossas vidas". (1)

      De fato, "Amor e Responsabilidade" fornece insights sobre o relaiconamento homem-mulher que realmente são capazes de mudar vidas - e são desesperadamente necessários hoje em dia. A nova geração, crescida no período pós-revolução sexual, está sedenta por qualquer direcionamento que a ajude a conduzir seus relacionamentos com o sexo oposto. Solteiros, noivos e jovens casais encontrarão em "Amor e Responsabilidade" não apenas uma perspectiva diferente de tudo que o mundo tende a oferecer, mas uma visão que, uma vez encontrada, certamente terá um impacto positivo na maneira com que nos relacionamos com os outros.

Nesta curta série de artigos, meus objetivos são modestos. Não pretendo oferecer uma análise acadêmica desse livro, nem entrar em debates eruditos sobre ética sexual. Pretendo, apenas, tornar mais acessíveis aos leitores leigos alguns dos insights dessa desafiante obra filosófica, e oferecer algumas de minhas próprias reflexões durante esse caminho, com a esperança de que os leitores possam se beneficiar da visão que o Papa João Paulo II tem sobre o amor e a sexualidade, e para que possam encontrar aplicações em suas próprias vidas.

O princípio personalista

      O primeiro grande objetivo do Papa João Paulo II no livro “Amor e Responsabilidade” é explicar o que ele chama de “princípio personalista”. De acordo com esse princípio fundamental para as relações humanas, “uma pessoa não deve ser para a outra pessoa apenas um meio para atingir um fim”. Em outras palavras, nunca devemos tratar as pessoas como meros instrumentos para atingir nossos próprios objetivos.

      João Paulo II explica porque deve ser assim. As pessoas humanas são capazes de autodeterminação. Ao contrário dos animais, que agem de acordo com seus instintos e apetites, os seres humanos podem agir deliberadamente. Através da autorreflexão, as pessoas podem escolher um curso de ação para si mesmas, e impor seu “mundo interior” para o mundo exterior através de suas escolhas. Tratar uma pessoa humana como mero instrumento para meus próprios objetivos é violar a dignidade da pessoa como ser que pode se autodeterminar. “Toda pessoa é, por natureza, capaz de determinar seus próprios fins. Qualquer um que trate uma pessoa como um meio para um fim violenta a própria essência do outro” (trecho do livro Amor e Responsabilidade).

Amar ou usar?

      O que torna difícil viver na prática esse princípio básico das relações humanas é o espírito de utilitarianismo que permeia nossa sociedade Na visão utilitarista, as melhores ações humanas são aquelas que são mais úteis. E útil é aquilo que maximiza meu prazer e conforto e minimiza minha dor. A pressuposição que está por trás desse pensamento é que a felicidade consiste no prazer. Portanto, eu deveria sempre, segundo essa visão, perseguir tudo que me desse conforto, vantagem e benefício, e deveria evitar tudo que causasse sofrimento, desvantagem e perda.

      Essa visão utilitarista afeta a maneira com que nos relacionamos com o outro. Se meu objetivo principal é perseguir meu próprio prazer, então eu faço as escolhas na minha vida com base em quanto elas me levarão a esse objetivo. Disso resuta que muitas pessoas hoje em dia – até mesmo bons cristãos – podem avaliar um relacionamento em termos de quão útil uma pessoa é para que eu atinja esse objetivo, ou quanta “diversão” eu tenho com essa pessoa. O Papa João Paulo II diz que, uma vez adotada essa atitude utilitária, começamos a reduzir as pessoas em nossas vidas a simples objetos que usamos para nosso próprio prazer.

      Isso ajuda a explicar porque muitas amizades e “namoros” (e até mesmo casamentos) hoje em dia são tão frágeis e tão facilmente se dissolvem. Se eu avalio uma mulher com base apenas no que ela pode me trazer de “vantagem”, ou apenas com base no quanto eu posso obter de prazer estando com ela, então esse relacionamento não tem fundamentos sólidos. Assim que eu deixar de experimentar prazer ou benefício do tempo que passo com ela – ou assim que eu encontre outra pessoa que me dê mais prazer ou benefício –, ela passa a não valer mais nada para mim. Essa visão é muito distante do princípio personalista, e mais distante ainda de um relacionamento baseado no amor compromissado.

Amor e amizade

      Aqui, pode ser útil mencionar os diferentes tipos de amizade, de acordo com Aristóteles, a quem o Papa João Paulo II cita na sua discussão sobre o amor.

      Para Aristóteles, há três tipos de amizade, baseados em três tipos de afeição que unem as pessoas. Primeiramente, em uma amizade “por utilidade”, a afeição está baseada no benefício ou uso que os amigos extraem do relacionamento. Cada pessoa ganha alguma coisa com a amizade que serve a seu benefício, e o benefício mútuo da relação é o que une as duas pessoas.

     Por exemplo, muitas amizades no ambiente de trabalho estão nessa categoria. Digamos que Bob possui uma empresa de construção civil em Boston. Ele tem uma amizade com Sam em São Francisco porque Sam vende pelo melhor preço o tipo de parafuso que Bob precisa. Para realizarem seus negócios Bob e Sam se encontram algumas vezes no ano, falam no telefone mais ou menos uma vez por semana, e trocam e-mails com certa frequência. Ao longo dos anos fazendo negócios, os dois aprenderam sobre a carreira, a família e os interesses do outro. Eles se dão bem, e sinceramente desejam tudo de bom na vida da outra pessoa. Eles são amigos, mas o que os une é o benefício particular que ganham com a amizade: parafusos para Bob e vendas para Sam.

      Em segundo lugar, em uma amizade “por satisfação” a base da afeição é o prazer que se tira do relacionamento. Vê-se o amigo como a causa de algum prazer ou satisfação para si. Essa amizade busca sobretudo ter “diversão” com a outra pessoa. Os amigos podem escutar o mesmo tipo de música, praticar o mesmo esporte, gostar do mesmo tipo de atividade física, viver no mesmo dormitório, ou gostar de sair para as mesmas baladas. As duas pessoas podem se importar sinceramente com o outro, e desejar para o outro tudo de bom na vida, mas o que os une como amigos é primariamente o prazer ou a “diversão” que vivenciam juntos.

Fundamentos frágeis

      Aristóteles nota que os tipos de amizade “por utilidade” e “por satisfação” são formas básicas de amizade, e não representam a amizade no sentido mais pleno. Amizades “por utilidade” e “por satisfação” não são necessariamente ruins, porém são as mais frágeis. Têm menos probabilidade de sobreviver ao teste do tempo, porque quando não existem mais os mútuos benefícios ou a “diversão” já não resta mais nada a unir as duas pessoas. Por exemplo, se Sam deixasse de vender parafusos, e passasse a vender livros, o que aconteceria com sua amizade com Bob, já que ele não venderia mais os parafusos que Bob precisa? Eles poderiam até trocar cartões de Natal, e e-mails de vez em quando, mas a amizade começaria a se dissolver, pois eles não precisariam mais se comunicar regularmente para tratar de negócios. A relação não é mais mutuamente benéfica.

      De modo similar, na amizade “por satisfação”, quando os interesses de uma pessoa mudam, ou quando alguém se muda e não está mais por perto para compartilhar os momentos “de diversão”, provavelmente a amizade se esvanece. Isso ajuda a explicar porque a amizade entre os jovens muda com tanta rapidez. No processo de mudança do colégio para a faculdade e depois para o mundo profissional eles amadurecem, e seus interesses, valores, convicções morais e localizações geográficas tendem a sofrer muitas mudanças. Se suas amizades nesse período de transição não está baseado em algo mais profundo do que o simples fato de viverem no mesmo dormitório, praticar o mesmo esporte, e se divertirem juntos, as amizades provavelmente se dissolverão com o tempo.

      Essas amizades baseadas em momentos de “diversão” juntos tendem a não continuarem depois que as experiências agradáveis não se encontram mais ali para serem compartilhadas.

Amizade virtuosa

      Para Aristóteles, a terceira forma de amizade é a amizade no sentido pleno. Pode ser chamada amizade virtuosa porque os dois amigos estão unidos não por interesses próprios, mas por interesse em um objetivo comum: a “vida virtuosa”, a vida moral que se encontra na virtude.

      O problema das amizades por prazer ou utilidade é que a ênfase está no que eu obtenho com ela. Entretanto, na amizade virtuosa, os dois amigos estão comprometidos em alcançar algo fora de si mesmos, algo que vai além de seus interesses pessoais. E esse bem maior é o que os une na amizade. Lutando lado a lado pela vida virtuosa, e encorajando um ao outro na vivência das virtudes, o amigo verdadeiro não se preocupa com o que vai obter do relacionamento, mas com o que é melhor para seu amigo e se preocupa em alcançar a vida virtuosa com seu amigo.

O que faz iniciar ou terminar um relacionamento

      Com esse contexto em mente, o Papa João Paulo II nos fornecer a chave para evitar que nossos relacionamentos caiam nas águas egoístas do utilitarianismo. Ele diz que a única maneira de dois seres humanos evitarem usar um ao outro é se relacionar em vista de um bem comum, como na amizade virtuosa. Se a outra pessoa vê o que é bom para mim, e adota isso como bem para si própria, “estabelece-se uma ligação especial entre eu e essa outra pessoa: a união de um bem comum e de um objetivo em comum”. Esse objetivo comum une as pessoas interiormente. Quando não vivemos nossos relacionamentos com esse bem comum em mente, inevitavelmente trataremos a outra pessoa como um meio para um fim, para algum prazer ou uso.

      Especialmente no casamento, há uma tentação a se portar de forma egoísta, a querer que o cônjuge ou os filhos se adaptem a nossos próprios planos, agendas e desejos. Por exemplo, quando se aproxima o final de semana, eu posso pensar apenas nas coisas que quero fazer – projetos que desejo completar em casa, trabalho que preciso realizar, eventos esportivos que quero assistir – sem dar prioridade ao que meu cônjuge ou meus filhos possas precisar de mim. Eu posso alegremente concordar em gastar dinheiro com coisas que são importantes para mim, mas resistir firmemente aos desejos de minha mulher de investir em algo que não me beneficia diretamente, mesmo sendo importante para nossa família.

     Entretanto, o Papa João Paulo II nos lembra que a amizade verdadeira, especialmente a amizade no matrimônio, deve ser centrada na união por um bem comum. No matrimônio cristão, esse objetivo comum envolve a união dos esposos, e o serviço um ao outro, ajudando um ao outro a crescer em santidade, e também a procriação e a educação dos filhos.

     Nossas próprias preferências e agendas devem estar subordinadas a esses bens maiores. Marido e mulher devem estar subordinados um ao outro para o bem dos filhos, buscando evitar que qualquer individualismo egoísta atrapalhe a família. Como em um time, marido e mulher trabalham em prol desse bem comum, e discernem juntos como usar melhor seu tempo, energia e recursos para atingir esses bens comuns do matrimônio.

     O Papa João Paulo II explica como a união em torno desse bem comum garante que uma pessoa não esteja sendo usada ou negligenciada por outra. “Quando duas pessoas diferentes conscientemente escolhem um objetivo comum, isso as coloca em igualdade e afasta a possibilidade de uma estar sendo subordinada a outra. Ambas... por assim dizer... estão subordinadas àquele bem que constitui o objetivo comum”.

     Sem essa finalidade comum, nossos relacionamentos inevitavelmente cairão em algum tipo de utilização da outra pessoa para nosso benefício ou prazer. No próximo artigo, consideraremos quão crucial esses pontos fundamentais de “Amor e Responsabilidade” são no trato com as atrações emocionais e físicas que tantas vezes experimentamos quando encontramos pessoas do outro sexo.

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Notas:
(1) Janet Smith, “John Paul II and Humanae Vitae” in Why Humanae Vitae was Right (San Francisco: Ignatius Press, 1993), 232.
(2) For a more extensive treatment of friendship in Aristotle, see J. Cuddeback, Friendship: The Art of Happiness (Greeley, CO: Epic, 2003).


O Autor: Edward Sri é professor assistente de Teologia do Benedictine College em Atchinson, Kansas, Estados Unidos, e autor de vários livros de Teologia e espiritualidade.

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Traduzido de: http://www.catholiceducation.org/articles/marriage/mf0078.html

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