O testemunho dos três lírios

sábado, 7 de maio de 2011

Quantos anos teria aquele monge solitário? Talvez mais de cem, impossível dizer com exatidão. A longa barba lhe passava a cintura, esvoaçando ao vento e rebrilhando ao sol.
Karina de Fátima Carmona Araújo
     Vê aquelas montanhas, para além desse belo lago azul? Pois bem, há séculos atrás, ali era uma região agreste e quase inabitada. Aproveitando o isolamento proporcionado pelos montes e bosques, uma ordem de monges observantes ali edificou sua abadia, a qual, naqueles bons tempos, chegou a contar com mais de duzentos religiosos.

     Entre eles havia um bom frade chamado Alexandrino, homem culto que procurou aproximar-se de Deus estudando as Santas Escrituras e os veneráveis textos que nos deixaram os sábios doutores do passado. Durante anos cresceu em saber, e em virtude também.

     Mas em certo momento constatou que tocara os limites de sua própria inteligência, enquanto os imensuráveis ensinamentos e cristãos mistérios seguiam seu vôo rumo ao infinito. Começou então a sentir-se aflito, pois tinha grande satisfação em compreender tudo quanto submetia à análise de seu intelecto.

    Agravou-se sua aflição quando, num determinado dia, analisou com especial atenção esta passagem latina que canta a virgindade de Maria: Post partum, Virgo, inviolata permansisti (Após o parto, ó Virgem, permanecestes intacta).

- Pois como!... Será assim mesmo? - perguntava-se Frei Alexandrino.

     Decidiu então buscar nos livros maior esclarecimento, e mesmo depois de consultar dezenas dos mais renomados
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"O homem de Deus golpeou o solo com seu
bastão, e logo aparecereu mais um extraordi-
nário lírio, que em beleza e alvura superava
os dois primeiros" ...
                                   Natalino Signorini
autores, não julgou plenamente satisfeita a sua dúvida. Não vamos nos alongar mais... basta dizer que a suspeita é como uma doença contagiosa, e a partir do momento em que o pobre monge vacilou neste ponto de doutrina, a incerteza pouco a pouco alastrou-se em sua alma, e após alguns meses ele naufragava num amargo torvelinho de desconfianças e dúvidas.

     Sofria no isolamento, pois tinha vergonha de revelar aos outros seu tumulto interior. Mas um dia, quando passeava pelo jardim, viu o idoso irmão converso cuidando das flores. "Com este pobrezinho, não haverá mal em conversar. Ele certamente não se rirá de mim nem se escandalizará com os problemas que me preocupam". Assim pensando, entabulou conversa com o velho jardineiro.

     Após algum tempo, o irmão converso - sorrindo e sem parar de podar as roseiras - disse-lhe, com seu característico sotaque camponês:

- É, irmão... acho que nos livros o senhor não vai encontrar as respostas a essas perguntas. Por que não vai perguntar lá ao beato Egídio? - Beato Egídio? Quem é ele? Não conheço esse homem.

- Claro que não conhece. Ele vive lá em cima, na montanha, há mais de sessenta anos, rezando e fazendo penitência. É um monge, um eremita solitário. Um santo! Vá lá, tenho certeza de que não será uma viagem inútil...

     Frei Alexandrino refletiu um pouco, considerando bem sensato o conselho do irmão jardineiro. Não perdeu tempo. Pediu autorização ao superior e na manhã seguinte, antes do raiar da aurora, partiu para a montanha.


     Era uma longa e exaustiva caminhada. Após horas subindo a pedregosa trilha, ele avistava muito abaixo as longínquas planícies entrecortadas por rios que, vistos do alto, não passavam de estreitos fios serpenteantes. Por fim, chegou à porta da gruta onde, como haviam lhe indicado, vivia o virtuoso anacoreta.

     Não precisou esperar. Parecia que o eremita Egídio já o aguardava, tão prontamente apareceu no limiar de seu abrigo. Quantos anos teria ele? Talvez mais de cem, impossível dizer com exatidão. Embora marcada pela idade, sua face era de uma alvura impressionante, superada apenas pelo branco imaculado da longa barba que lhe passava a cintura, esvoaçando ao vento e rebrilhando ao sol.

     Frei Alexandrino abriu a boca para falar, mas, antes mesmo de pronunciar qualquer palavra, o eremita lhe disse:

- Irmão, a Santíssima Mãe de Deus, Maria, foi virgem antes de dar-nos Jesus!

     Dizendo isto, bateu com seu bastão no solo. Qual não foi a surpresa do inseguro monge ao ver brotar um formoso e níveo lírio no exato lugar onde Egídio golpeara! Este tornou a bater na terra, afirmando:

- Irmão, Maria Santíssima foi virgem ao dar-nos Jesus!

     Imediatamente surgiu um segundo lírio, mais lindo que o primeiro. Pela terceira vez, o homem de Deus golpeou o solo com seu bastão, exclamando:

- Irmão, Maria Santíssima foi virgem depois de dar-nos Jesus! E logo apareceu mais um extraordinário lírio, que em beleza e alvura superava os dois primeiros.

     Frei Alexandrino caiu de joelhos, mudo de pasmo e maravilhamento ante o milagre que assistia. No entanto, o monge Egídio continuou:

- Mas... quando um homem pretende fazer a grandeza de Deus caber nos estreitos limites de sua inteligência, perigosamente se arrisca a ver murchar em seu coração o precioso dom da fé!

     Mal acabara de enunciar essas palavras, os três magníficos lírios murcharam ao mesmo tempo, tornando- se cinzentos e ressequidos. Compreendendo que esses lírios eram símbolo da virtude da fé murcha em sua alma invadida pela dúvida, o infeliz Frei Alexandrino curvou- se, cobriu o rosto com as mãos e derramava amargas e abundantes lágrimas.

Impassível, o austero solitário prosseguiu:

- Todavia, procuraste a ajuda de teus irmãos, reconhecendo não ter em ti forças para superar teus males.Com isso, praticaste um dos atos que mais agrada a nosso Criador: a humildade. Irmão, o arrependimento sincero atrai o perdão de Deus, cuja graça pode restaurar nossas almas, fazendo-as até mais belas do que eram antes da falta.

     Nesse momento os três lírios milagrosamente se restauraram, tornando- se ainda mais brancos e viçosos do que haviam sido pouco antes.


     Dito isso, o beato Egídio, sem mais, entrou calma e serenamente em sua pobre gruta, deixando o espantado monge, atônito e sem palavras, de joelhos diante dos magníficos lírios recompostos. Frei Alexandrino sentiu-se então invadido por uma profunda paz. Todas as suas dúvidas desapareceram, cedendo lugar a uma ardorosa fé e a uma terna devoção a Maria Santíssima, como nunca experimentara anteriormente.

     Com todo cuidado, guardou os três preciosos lírios até o fim de sua vida, como testemunhas irrefutáveis da perpétua virgindade da Mãe de Deus, da qual tornou-se incansável apóstolo, pois a partir de então jamais deixou de pregar, com palavras inflamadas de amor, essa verdade de fé que antes lhe causara grande tormento e agora lhe produzia inefável doçura no coração: Post partum, Virgo, inviolata permansisti.
(Revista Arautos do Evangelho, Fev/2008, n. 74, p. 46-47)

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